24.12.07

A flor amarela.

Ela era bonita. Bem bonita.
Bonita é pouco! Era esplêndida.
Quando encontrei-a, me fugiu o ar dos pulmões.
Olhei pra um lado, olhei pro outro, e fui falar com ela.

Ela pareceu surpresa de me ver. Mas por quê? Estranhos abordando-a na rua não devem ser apenas raros incidentes. Contei-lhe que estava impressionado. Ela ruborizou - ruborizou! pode acreditar nisso? Eu custei a acreditar. A beleza moderna se putrefaz em sua superficialidade, quase já não se vê belos rostos ruborizados por aí. Os elogios banalizaram-se, as belas palavras tornaram-se clichê. O belo hoje tem consciência que é belo, e dizer isto a ele não faz com que esboce qualquer reação. A beleza nos novos tempos é amiga inseparável do ego. Ó, ego, que está sempre a aumentar a cada ínfima parte do tempo. E para ruborizar-se, algo há de mexer em nós, por dentro, é deixar a emoção aflorar antes mesmo de pensar em escondê-la. Os belos não ruborizam mais.

Mas ela não. Ela, no alto em sua beleza, beleza que há de se contemplar, uma tez rosada, como se fosse corada permanentemente, como se sentisse a todo o tempo. Era sem dúvida um ser sentimental. Cabelos lisos, pendendo ao lado do rosto, mal cuidados, é verdade, e meio sem cor, de tantas tintas que já aplicou, mas e aqueles olhos? Os olhos...Olhos de sonho. Olhos raríssimos de se ver, ainda mais agora que não se sonha mais, que sonhar é privilégio dos tolos, que a vida se baseia falsamente na razão.
O corpo era sim a mistura perfeita entre menina e mulher, eu não saberia dizer a idade dela, não saberia dizer o seu nome. Observei-a de perto. Ela parecia tentar fugir. Não sabia exatamente se de mim ou de sua própria beleza. Senti compaixão, pena. Agora sim via claramente. Uma menina, apenas. Uma criança. Levei minha mão a teu rosto.

Pensei por um segundo ter visto um lampejo de ternura em seu olhar, mas não. Ela olhou-me com desdém, como se eu fosse um estranho - e eu era, afinal. E foram poucos os segundos que separaram esse olhar do momento seguinte, embora pra mim a crueldade desse olhar tenha-o feito parecer durar muito mais. Como uma menina bonita dessas poderia olhar-me de forma tão cruel? Mas a crueldade não deformou-lhe a face, pelo contrário, deixou-a ainda mais bela. Não tive tempo para tirar minhas conclusões, ela já estava andando rápido na outra direção e sumindo entre os muitos rostos que andavam rumo ao que desconheço.

Achei ter-la perdido de vista, e acendi um cigarro melancolicamente, imaginando ter-lhe estragado o dia. O que passou pela minha cabeça? Perguntava-me mil e uma possibilidades para não ter posto tudo - que tudo? - a perder. "Ah, eu sempre perco" - Pensei. Foi quando vi.
Ela esteve em minha frente por mais de meia hora, enquanto fumava, no bistrô em frente. Não era um bistrô. É que bistrô me faz lembrar Paris, e eu pensei deixar a história mais romântica. Era uma loja de fast food bem lotada e cheia de funcionários (escravos). E ela ali, com os olhos opacos, sem sonhos dentro deles. Atrás de um balcão escrupulosamente limpo, porque a gerente exigia que fosse assim. Um pouquinho só de sujeira talvez fosse bem-vindo, talvez não a visse se debruçar para limpar o balcão tantas vezes ao dia. Os cabelos presos no alto da cabeça, cheio de fios soltos. Um uniforme cinza e ridículo, que a ofuscava ainda mais. Mal suportava vê-la debruçada sobre esse balcão, desperdiçando a beleza que lhe foi dada, não é justo com os deuses, pequena. Não é justo comigo, com você.

Suportei vê-la ouvindo a chefe gritar meio mundo de humilhações, ao achar uma parte do balcão que ainda não fôra limpa. Vi seus olhos sem sonhos encherem-se de lágrimas. Manteve-se calada e muito quieta. Trocar sonhos por lágrimas. Como pôde? É, tolos são os que sonham, os que sentirão mais tarde o sabor de fel da desilusão. Comprei-lhe uma rosa amarela. Amarela para lhe dar forças, era do que precisava. Fui no seu caixa. "Boa tarde, minha senhora". "O que queres?" - ela perguntou, me reconhecendo. Estendi a flor pra ela e fui-me embora antes de ver o sorriso na sua face, antes de ver que a chefe lhe tomou a flor das mãos segundos depois e despedaçou-a no chão, antes de ver que ela catou os restos sem que a chefe visse, enquanto estava sendo demitida, e saiu dançando da loja, de tão feliz. Sem ver que devolvi o brilho aos olhos dela e sem nunca saber que a partir daquela noite, a cada rosto na rua que ela olhasse ela procuraria o meu, o do homem que, segundo ela, salvou a sua vida.