26.1.08

E bate em paz.

Talita era moça moderna. Diferente. Não o diferente igual que hoje todos dizem ser. Diferente, mesmo. E digo diferente, porque é tanto que eu não sei descrever em palavras.


Enquanto mascava chiclete e se lembrava do pôr-do-sol de ontem, escutava num fone a música que teu amigo, também diferente, lhe dizia ser de um novo seriado inteiramente gay. Sorria, mas sem rir. Queria relaxar, à todo custo. Livrar-se das preocupações, dos elos, dos abraços que ainda não se desenlaçaram, ainda que os corpos ainda estejam separados. Cuidar de pequenas feridas, que juntas podiam fazê-la desintegrar a qualquer instante.



Por isso estava no ônibus, seguindo à rodoviária de Salvador. Pra seguir pra uma cidadezinha bem pequena no recôncavo baiano, daquelas cidades que de tão longe nem se ousa dizer o nome. Para esquecer-se. Achar-se, entender-se. Se há um conselho que eu dou é: se alguém está tentando se achar, fique onde está. Caso contrário pode acabar perdendo-se para sempre. Mas Talita não me ouviu. Não quis me ouvir. Julgava saber o melhor para ela. Quem sou para contradizer?


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Juvenal era homem bruto. Da roça, do sertão. Homem de personalidade peculiar, que não se ver em qualquer um. Há quem diga que foram os raios de sol, que penetraram tão fundo em tua pele e alma que a modificaram para sempre.


Mas Juvenal não era diferente. Não, não. Era comum. Mais comum, impossível. Era um dos homens que arrancam um pedaço de si ao retirar-se de seu tão amado chão para seguir para o futuro sempre incerto de uma viagem à cidade grande. É um dos homens que não têm em seu vocabulário a palavra "adaptar". E se a têm, a esquecem, no momento em que tocam seus pés neste chão asfaltado, e que escutam o primeiro sulista exaltado que os olha feio por estar empobrecendo suas lindas cidades. Um daqueles homens que são retratos de uma realidade que grita, mas em silêncio - ninguém a escuta.

Um destes homens que têm como parte inamputável de si a saudade, a nostalgia, de um lugar que é a graça e o desespero de suas vidas. Que dariam tudo pra voltar, mas que sabem que não podem. Estes homens da cidade mal sabem a dor que é ver tua terra secar, secarem teus filhos, teus amores, teus riachos, tuas esperanças. Ah, não sabem! Não sabem o que é rezar por uma só nuvem no céu demasiado azul, que de tão azul dá náuseas em seu espectador. Era essa a rotina de Juvenal desde que ele se entendia por gente. Assistir o céu, em busca de mudança.

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O encontro entre os dois foi de forma inusitada. No momento em que os pés de Juvenal tocaram a cidade de Salvador, teus olhos, que não conheciam lágrimas há anos, tornaram a inundar-se. Com a chuva. E com as lágrimas. A chuva abundante, chuva de litoral, já não havia azul no céu, já não havia azul no coração de Talita, nem no de Juvenal.

Talita hoje angustiava-se, enquanto Juvenal, ao olhar o céu, aliviava-se. Sentia que um tempo melhor viria - enganado estava. Entrou no primeiro ônibus. E de tão feliz, quase sem sentir, tocou sua sanfona e cantarolou, para que todos naquele ônibus pudessem sentir o mesmo sorriso que despontava involuntariamente de seus lábios e de sua alma.

Talita logo enfastiou-se das músicas do novo companheiro de lotação. Queria escutar a música eletrônica do seriado, música alternativa, djs da cena urbana! Quem esse homem pensa que é? Irritou-se. Queria acender um cigarro. Não podia! Ora, que regras mais estúpidas. O céu a cuspir todas as suas injúrias em cima dela. Havia dias que chovia sem parar em Salvador. Ela já não aguentava, já não suportava! Teve uma idéia genial: Se eu pagar, ele pára.


Foi na direção do homem, que cantarolava com seu sotaque irritante uma música regional e estúpida, da qual ela queria distância. Pôs uma moeda de míseros 10 centavos na mão do homem. Foram vindo várias pessoas depositar dinheiro na mão do homem. Juvenal ficou assustado, não entendia o que estava acontecendo, ele não estava fazendo isso com qualquer interesse! Queria devolver todo o dinheiro, mas as moedas tilintavam e misturavam-se, e o causavam náuseas, mais náuseas que o céu anilado que costumava lhe fazer tonto.


Foi quando olharam-se nos olhos. E neste olhar transferiu-se tudo. Toda angústia dela, todo medo. Toda raiva que o homem tinha daquele ser da cidade, e toda a dor que sentia por estar ali. A felicidade esvaneceu-se com a mesma velocidade com que a chuva se foi. As chuvas em salvador vêm e vão antes que se possa dar-se conta delas. Juvenal transmitiu sua história com aquele olhar. Sua dor, suas perdas. Ela contou-lhe que queria ver o sol novamente. Ele disse-lhe que o sol não é bom, que ele come as esperanças, o amor, a vida em família, o horizonte. O olhar foi o reflexo do paradoxo daquelas vidas ali, se encontrando. Em pleno caos de ambas as almas, aquele olhar tão intenso. Talita baixou os olhos. Pensava nos problemas sociais, pensava em quem votar no ano que vem. O homem era só melancolia. Das mais intensas. Deixou cair o instrumento, deixou cair lágrimas quentes e incontroláveis, que afogavam teus olhos. Sentiu o nó na garganta. Jogou para cima as moedas. Todos o observavam, assustados.

O céu, cinza. Nublado. Sem azul. O ar quente, quente, que abafava os medos e as angústias para que ninguém visse - e ouvisse. Sons, barulhos, buzinas e gente a falar o que não se quer ouvir.

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Chegou a rodoviária. Talita soltou do ônibus, sentindo-se enfim, aliviada. Respirou fundo e sentiu que as coisas iam mudar. Juvenal soltou também do ônibus. Comprou uma passagem de volta. Não suportaria - precisava do azul. Percebeu que por pior que estivessem as coisas, ficando no mesmo lugar há chance de melhora. Mexer onde está quieto pode fazer piorar. E foram ambos em caminhos opostos, buscando a mesma coisa - sorrir. de novo. Entre a mudança e o hábito, oscilavam ambos. Ao sentarem-se, cada um em um ônibus diferente, pensaram a mesma coisa:

Descansa, coração. E bate em paz.