4.5.08

abismo multifacetado

e assim nós vivemos.
de vez em quando a crueldade vem à superfície, e se deixa ver.
nós vivemos na superfície - não nos apetece mergulhar.
é mais confortável olhar pra dentro.
não há meios de se optar pela escuridão.
uns, são deliberadamente empurrados.
mais fundo,
mais fundo. eternamente.
nós todos preferimos ignorá-la.
eu prefiro.

e enquanto uns julgam-se superiores,
ordenando balas, incendiando futuros, alardeando discursos.
outros gritam, em silêncio ou não, querem ver-se livres.
querem saber novamente definir a paz.
eu não sei.
eu não sei gritar.


a vida? a vida é sorte.
não cavamos nosso próprio abismo,
ele vem junto à nós.
e não há mesmo como fugir, contrariar o que nos foi determinado:
gritar, com desespero, pôr as vísceras pra fora,
ou mesmo rezar. pedir pela hora da partida.
cair aos poucos, ou de uma só vez.
esquecer-se.
cada um encontra sua própria dor da maneira que lhe apetece.

Eles dizem: dar a luz.
Uma criança, uma luz.
Mal sabe as dores que uma vida pode gerar.


Quando a crueldade se mostra assim, só um pouco,
eu choro. eu me indigno. sinto-me indigna de participar deste grupo, desta raça, filo, espécie.
humanidade. chamam de desumano o que é cruel. quem é humano, então?
e a dor? é humana? é racionalizável?
e o descontrole?

eu neste momento sinto vontade de agradecer,
não sei nem a quem, por ter nascido de quem nasci.
onde nasci. com todos os órgãos de meu corpo.
por ter nascido em tempos de paz. por, por ventura, estar viva até hoje.
por não ter tido que encarar o que há por baixo.
não há justiça - não há.
somos distribuídos por mero acaso neste planeta, posto ao acaso num universo tão grande que a minha mente ilimitada não cabe medir. somos vítimas da sorte. do acaso.
é o que há de mais cruel. o acaso é o pior dos destinos.

e eu digo agora, sabendo o quão clichê vou soar,
sabendo o quanto repetem isso à exaustão.
eu sinto vontade de lutar pela justiça enquanto posso.
no plano em que eu posso. lutar pelo que há de desumano.
erradicá-lo, não ter mais que assistí-lo, nem superficialmente.
não precisar mais ignorá-lo. preste atenção:
quero ter o direito de tentar mudar.
apenas tentar. tentar a sorte.
nesta loteria de desenganos.

quero permitir-me iludir - desde que isso me leve a tentar. a lutar. a manter-me tentando, não importa o que aconteça. é o que há de subjetivo em nós que nos mantém firmes e fortes na objetividade. são meus sonhos quase irreais, utópicos, que me mantém acordando todos os dias pela manhã para tentar. tentar silenciosamente. tentar, ainda que ignorando. tentar. permitam-me. permitam-me escrever o que vocês não querem ler, permitam-me escrever para organizar minhas pequenas dores, tapar meus buracos. sei que ainda é cedo, mas já vou.