14.11.07

Flor

Eu me lembro como se fosse hoje. Foi num ponto de ônibus.
Já tinha a encontrado aleatoriamente aqui e ali, mas ver, mesmo, do jeito que eu via naquele momento, jamais teria sido possível. Os raios de sol, naquele momento, concentraram-se completamente nela, e não havia outro lugar para onde eu pudesse olhar, mesmo se eu quisesse.

Ela apertou as mãos, nervosa. Provavelmente por uma angústia qualquer. Namorados, atrasos, mentiras e isso que faz parte de nossa vida. Suspirou e me perguntou as horas. Na verdade talvez não tenha sido pra mim, o momento não está claro em minha memória, me lembro apenas dela e dos olhos sombreados, com uma olheira aqui e ali, da melancolia sutil por trás dos óculos de aro vermelho. Me lembro que provavelmente ela estava a lembrar-se do namorado, que ela imaginava estar com outra naquele momento. O nome dela era Flor, ela morava em Ondina Morava sozinha, era atriz. Trabalhava com direção de arte e ganhava bem. Era mais bonita, mais simpática, mais culta do que ela. Se vestia melhor. Trepava melhor, também.
E ela não existia - só na convexa imaginação da moça, que divertia-se com o sutil prazer da dor de diminuir-se.


Ela lembra-se da cor dos olhos da mãe. Azul, azul como este céu sem nuvens, de sol escaldante. Fazia calor. Ela seca uma gota de suor em direção aos seios. Lembra-se dos desencantos. Lembra que mentiu pra uma amiga e não sabe o que fazer pra não mentir de novo. Tem unhas vermelhas. Não o vermelho da moda. Vermelho forte e aberto, vivo e berrante. Ela disse à manicure que ela estava livre pra escolher o esmalte. A mulher deve ter passado aquele que ninguém nunca usou. Mas ela até gostou. Combinava com seus óculos.


Ela não era magra. Nem gorda. Não se importava. O que a fez roer unha e borrar o esmalte nesse momento não foi insegurança. Ah, não. Desse mal ela não sofre. Ou finge não sofrer.
Ela tem cabelos bem pretos. E lisos. Bem presos no alto da cabeça. Segura uma bolsa, também vermelha, de cetim. Ela não é bonita. Nem feia. Não se importava. O que a fez borrar o esmalte foi a Flor, foi o gosto da angústia, que ela nunca quis largar. Fechou os olhos, como quem quer esquecer, ou lembrar. Levantou-se.

Eu estava no alto dos meus devaneios sobre a moça, quando ela se foi, sem que eu visse.
Entrou num ônibus que levava ao campo grande e partiu, sem nem olhar pra trás.
E eu morrerei me perguntando se era mesmo uma flor o motivo da sua angústia.